#29 A pobreza é um trauma
Como a falta de dinheiro ou o medo de ficar sem ele impactam a minha qualidade de vida (e de qualquer pessoa de classe trabalhadora)
Tenho a impressão de que, no Brasil, não sabemos definir quem é pobre. Há tantas pessoas em situação de miséria, que aqueles que têm um pouco mais de estabilidade financeira costumam se identificar com classes sociais às quais não pertencem. Não é à toa que o meme do chá revelação de classe social se tornou popular e arrancou risadas nas redes.
Quando converso com pessoas de fora da bolha esquerdista, é comum me deparar com quem seja contra taxação de grandes fortunas e desapropriação de prédios e terras inativos como se, por terem um salário, um carro e um apartamento financiado, eles pudessem ser, de alguma forma, prejudicados por essas medidas. Na maior parte dos casos, sequer compreendem quais os trâmites necessários para implantá-las.
Para entendê-las, é preciso descer de um pedestal político no qual nós, progressistas, subimos, especialmente nos últimos anos. Essas pessoas - frequentemente nossos familiares e amigos - não são ruins - alguns são, eu sei -, mas, sim, doutrinadas desde muito jovens a acreditarem na meritocracia sem perceberem que esse pensamento favorece sua exploração enquanto trabalhadores e fomenta traumas herdados dos seus pais e que, consequentemente, são passados para seus filhos.
O dia que descobri que era pobre
Até eu terminar o ensino fundamental, sabia que estava longe de ser rica, mas não tinha noção do quão pobre era.
Por ser filha única e ambos pais trabalharem, tinha diversos “privilégios” que meus colegas da escola pública do bairro não tinham. Todo ano, ganhava material escolar novo; frequentava shoppings, cinema e McDonald’s e não comia a merenda da escola, como meus colegas. Minha mãe preparava uma lancheira recheada de guloseimas, que fazia a criançada me seguir durante o recreio e me rendeu a alcunha de “regulada” - assim como qualquer rico, eu odiava compartilhar meus privilégios.
Porém, quando me matriculei no ensino médio em uma escola particular, me dei conta do quão pobre eu era. Não só porque meus colegas moravam em bairros mais nobres que o meu, próximos ao centro da cidade, ou porque seus pais tinham carros mais caros que o da minha família ou porque muitos tinham casa de veraneio.
Materialmente, eles tinham, sim, um patrimônio maior que o meu e isso fazia com que me sentisse inferior, mas o que me pegava mesmo era o fato deles conhecerem toda uma vida que eu não fazia ideia que existia até aquele momento.
Eu era a garota que morava longe. Não que me chamassem assim, mas meu endereço era uma menção frequente nas nossas conversas: “ah é que você mora longe”. Eles sequer sabiam onde eu morava. Meu bairro era um nome qualquer numa linha de ônibus que passava perto da casa deles, mas que eles jamais pegariam.
Me sentia pequena o tempo todo porque não sabia tanto quanto eles e isso era reforçado pelo tratamento que recebia de alguns professores. Uma não perdia a oportunidade de me chamar de mal-educada ou algo do tipo. Desconfiava que isso tinha a ver com o fato de eu ter estudado minha vida toda em escolas públicas. O outro se recusava a me explicar a matemática que eu tinha fracassado em aprender até então. “Isso é 5ª série. Você já deveria saber. Não tem como te ensinar agora”, ele dizia em voz alta e eu me sentia exposta diante dos meus colegas.
Havia uma gama de coisas que eles já tinham experimentado e eu não: os restaurantes, as viagens, as roupas, as músicas, os livros, os confortos. Hoje, acho que eles nem tinham tanta grana assim, mas, aos 14 anos, me pareciam a Paris Hilton e eu quase que me desculpava por estar ali, ocupando a mesma sala de aula que eles.
Descansar é uma culpa
Vocês que nasceram numa família de classe trabalhadora conseguem descansar verdadeiramente? Porque eu não consigo.
Para ser honesta, sou capaz de passar o dia todo diante da televisão, vendo séries e comendo delivery. Vou da cama para o sofá e do sofá para cama e acho ótimo, exceto pelo fato de me sentir culpada.
Quando tiro tempo para descansar, sou invadida pela sensação de estar fazendo algo errado e fico repetindo justificativas do porquê tenho o direito de não fazer nada por um dia.
Deixo, sim, a casa bagunçada, louça por lavar, pilha de roupa suja acumulada no cesto; negligencio minhas obrigações até mais do que deveria, mas a sensação é de que nunca descanso porque, quando tento fazê-lo, me sinto como se estivesse comentendo um crime, especialmente se poderia estar ganhando dinheiro durante a minha pausa.
Medo e raiva de gastar
Uma dia notei que, assim como eu, minha mãe tem o hábito de se justificar quando compra algo mais caro. Estávamos conversando e ela me deu todo o passo a passo lógico de ter gastando R$ 300 numa sandália. Pode ser que esteja enganada, mas interpretei seu relato como culpa por ter gastado “tanto dinheiro” num calçado.
Além da culpa, sinto que essa atitude abarca também o medo de gastar o que se conseguiu com trabalho duro. Toda vez que preciso investir meu dinheiro em algo mais caro, me vejo copiando a atitude da minha mãe e argumentando para mim mesma e para os outros sobre o motivo de ter feito tal compra. “Não estou desperdiçando meu dinheiro suado. Era necessário” é o que minhas palavras expressam a cada compra.
Também sinto uma raiva tremenda de gastar dinheiro, mesmo que seja com algo fundamental para meu bem-estar. Durante a pandemia, meu aquecedor a gás começou a dar pau. Ele apitava loucamente e, dali uns minutos, desligava a água quente. Fiquei meses convivendo com esse incômodo, inclusive nos meses mais frios, porque não só não tinha o dinheiro para fazer o conserto, como também não queria gastá-lo com isso.
Me dava uma raiva tremenda pensar que deveria abrir mão de outras coisas para fazer o conserto. Que inferno! Quando tomar banho se tornou um suplício, chamei o rapaz para arrumar, mas fiz o pix para ele com certo ressentimento. Quando se é pobre, parece que dói gastar dinheiro, mesmo que seja com algo útil e isso é péssimo.
Insuficiência crônica
Hoje, ganho mais do que ganhava em 2013, o ano em que vim morar no Rio de Janeiro. Pagava o aluguel da minha república, alimentação e meu lazer com um salário mixuruca e era muito feliz.
Com o passar dos anos, estudei feito uma condenada. Nunca parei de estudar. Nos últimos dez anos, quase me formei em Letras; fiz cursos de roteiro audiovisual, marketing digital, UX writing, uma pós-graduação e ainda estudei francês.
Minha renda aumentou, mas o custo de vida subiu muito além dos meus ganhos e hoje não estou num lugar muito melhor do que estava há dez anos atrás. Enquanto corro para alcançá-los, meus sonhos correm à frente, sempre se distanciando de mim.
Então, me sinto insuficiente, como se não estivesse fazendo tudo quanto me é possível. E por mais que eu saiba que não é exatamente culpa minha, há uma voz interna severa, que me pune por não ter alcançado os meus objetivos.
Uma sucessão de decisões erradas
A minha vida até agora, embora tenha tido alguns sucessos, é uma sucessão de decisões erradas e grande parte dessas decisões foram tomadas com base na segurança financeira.
Comecei a faculdade aos dezessete anos por insistência do meu pai. Era importante que eu tivesse meu diploma universitário o mais rápido possível para sair na frente no mercado de trabalho e ter segurança financeira cedo na vida.
Sei que ele estava muito bem intencionado. No entanto, é inevitável constatar que seu pulso firme para que eu não “perdesse tempo” era enraizado no seu medo da pobreza, afinal ele a sentiu na pele, de uma maneira que nunca me permitiu sentir.
Fiz Rádio e TV e foi ótimo porque era o que eu queria estudar. Amo audiovisual e, talvez se tivesse sido bem-sucedida nessa área, seria super realizada - mas muito talvez porque é um mercado horroroso. Porém, se eu tivesse - alerta breguice - seguido meu coração e dado a ele o tempo pelo qual me implorava, teria feito outra escolha ou feito essa escolha com mais maturidade.
Ainda na faculdade, escolhi dar aulas de inglês porque fiquei deprimida por ter sido rejeitada em grandes processos seletivos da minha área e o resto das vagas disponíveis no mercado eram todas arrombadas. Além disso, me sentia culpada por depender dos meus pais para tudo. Eles pagavam a faculdade, minhas roupas e ainda tinham que me dar dinheiro para sair. De fato, trabalhar me deu a liberdade que eu buscava, mas a questão é que fui me enveredando cada vez mais pelo caminho das aulas em busca de estabilidade financeira e não de realização.
Anos se passaram e continuei tomando decisões profissionais com base no meu medo da pobreza e o resultado é sempre o mesmo: a frustração. No fim, nem ganhei o dinheiro que gostaria e nem faço algo que realmente amo.
E tem mais: quando pobres nascem com talentos artísticos, a escalada para o sucesso costuma ser bem longa sem os contatos e sem o apoio de quem te cerca. Se você é meio fraco de espírito, com uma autoestima meio merda e tem medo de empobrecer mais, a tendência é não se dedicar à sua arte por achar que ela é inantigível, uma bobagem de criança. Mas não é! Se você se identifica com isso, é foda mesmo, mas está na hora de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa por você mesmo porque a frustração é uma megera e vai te infernizar até a hora que você bater as botas.
Servimos bem para sempre servir
Quando se nasce pobre, você é doutrinado para obedecer. É o famoso “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Mas para além disso, o discurso meritocrático é difundido ao ponto das pessoas se orgulharem e pautarem seu valor de acordo com o quanto se sacrificam para ter o minímo.
Cresci vendo muitos dos adultos ao meu redor trabalharem por 16 horas por dia, inclusive fins de semana; cruzarem quilômetros em seus carros sem ganharem um auxílio-combustível e perderem sua saúde em prol do orgulho que sentiam ao pagar a mensalidade da casa, do carro popular, pela a comida no prato e pelo aluguel da casinha na Praia Grande no verão - quando dava para tanto.
Eles se esforçavam ao máximo e conseguiam mais que seus pais, trabalhadores rurais analfabetos, que migraram para o Grande ABC para trabalhar no chão das fábricas, as meninas dos olhos do progresso brasileiro.
E de fato, tudo que conseguiram é admirável. Maior parte dos meus conterrâneos são netos de analfabetos como eu e, hoje, possuímos diplomas universitários e gozamos de muito mais conforto do que nossos avós ao ponto de termos tempo de fazer reflexões como as que faço agora neste texto. É um salto gigante de uma geração para outra!
Porém, é um perigo adotar esse discurso de que “se eu consegui, você consegue”, porque ele ignora que nem todo mundo dá a largada da mesma marca e que não deveria ser correto e muito menos louvável que alguém perca os melhores anos da sua vida para conseguir o mínimo.
Vou seguir trabalhando para conseguir o que desejo, assim como meus pais sempre fizeram, mas vou lutar como posso, com passos de formiguinha, para que eu e as gerações futuras possamos trabalhar menos e ganhar mais para experimentar um outro tipo de vida.
Quero desfrutar dela sem ter que me sujeitar a abusos para pagar as contas. Não quero passar o dia todo trancada num escritório sem ver o dia para ter um teto sobre a cabeça enquanto minha saúde emplode. Quero que minha vida se pareça o tanto quanto for possível com a de uma pessoa rica!
A pobreza nos ensina que a vida é dura mesmo e que a gente tem que se sujeitar à exploração para ter um mínimo de respiro, mas essa é uma lição que luto todo dia para desaprender.
É proíbido ser feliz
Quando conquisto algo e compartilho a novidade com alguém, logo me justifico: “deu muito trabalho, não é como se eu tivesse tido sorte, agora vou ter que me esforçar ainda mais para manter”. Às vezes, nem foi tudo isso, foi um golpe de sorte mesmo e tô por cima da carne seca, mas há algo dentro de mim que me impele a sair diminuindo o tamanho da minha conquista, como se não fosse nada demais.
Há algo em mim que acredita que se eu estiver melhor que as pessoas do meu círculo social, elas vão ter inveja de mim ou vão me achar metida e acabar se afastando. Claro que dinheiro e as conquistas que ele compra não são as únicas coisas que provocam recalque em quem nos cerca, mas acho que se todo mundo tivesse as mesmas condições, essa sensação de que é proíbido ser feliz quando todo mundo está na merda seria bem menor.
Além disso, ser pobre me dá a sensação de que o mal está sempre à espreita. Você pode conquistar o que for, mas a luta ainda não está ganha. É preciso manter o que se conseguiu com esforço. Você compra algo e tem que proteger seu bem com unhas e dentes porque, se algo acontecer com ele, como vai substituí-lo? Parece que não é possível se sentir feliz. Por mais longe que se chegue, uma mudança de curso pode te tirar o que você lutou para conquistar.
Haja terapia para ser pobre e feliz. E terapia é cara e nem todo pobre tem como pagar ou entende que aquilo não é coisa de rico - ou de louco. Afinal ser pobre não é só uma questão de dinheiro, é também uma questão de espírito!
O que a ciência diz sobre a pobreza
Veja algumas matérias que explicam os efeitos da pobreza no nosso cérebro:
Esta edição da newsletter foi reescrita algumas vezes e ficou guardada aqui por uns dois meses. Hoje, a li pela última vez e decidi enviá-la, mesmo achando que faltam algumas coisas. É hora de jogá-la no mundo!
Nos últimos dias, vivi algumas experiências que me fizeram pensar no quanto o dinheiro resolve problemas e como ser pobre é também ter uma pobreza de soluções.
Qual é a sua relação com a pobreza? O meu relato de trouxe algum reflexão sobre o tema?
Compartilhando aqui que sinto o mesmo, a mesma culpa em gastar. Mesmo agora, que nos últimos 6 meses, tenho ganhado mais que o dobro que ganhava antes, ainda coloco qualquer coisa que preciso no carrinho da Amazon e deixo la até eu ter certeza que preciso. Mesmo que isso signifique inclusive empurrar com a barriga o que preciso fazer de verdade porque falta aquela ferramenta. É como se eu tivesse que reaprender (mas não muito, senão vai que a situação muda e eu preciso ter que contar moedas pra ir no mercado de novo). Até um passado não tão distante assim eu, literalmente, saia com um punhado de moedas na mão pra ir no mercado. Qualidade e preço, centavos que contam muito. 5 minutos pra decidir que pão levo. Odiava ir no mercado, sofria. "Só o essencial" - o mantra que mantinha enquanto rodava procurando por algo.