#28 Qual o problema de ser um pouco humilhada de vez em quando?
Me pergunto se há uma forma de levar as humilhações na boa. Acredito que sim!
Aos 21 anos, realizei meu grande sonho de fazer intercâmbio nos Estados Unidos. Para bancar essa viagem, escolhi ser au pair, uma babá estudante que mora com seu empregador.
No início, tudo foram flores e fui recebida com muitas firulas, que iam desde de jantar com bife chique a bilhetinho com “I love you” precipitado.
Mas logo as máscaras caíram e as pequenas violências psicológicas e xenofobias começaram a rolar em tom de brincadeirinha, daquele tipo que te deixa desconfortável, mas se você reclamar, vai ser taxada de louca.
Depois do meu aniversário de 22 anos, fiquei meio doente e fui maltratada pela minha jovem patroa rica. Então peguei tudo de desagradável que eles já tinham me dito e transformei numa grande bola de neve de ódio e usei a humilhação como combustível para alimentar a saudade avassaladora de casa.
Hoje, me arrependo um pouco de ter sucumbido às pequenas humilhações para justificar minha volta para casa. A humilhação não foi o principal motivo para ter voltado, mas foi um grande estímulo. No entanto, refletindo hoje, me pergunto: qual o problema de ter sido ser um pouco humilhada?
Nada apaga o que senti, mas tenho me questionado se eles mereciam toda essa relevância na minha vida, sabe?
Mas qual o problema de ser um pouco humilhada de vez em quando?
É muito doloroso quando alguém identifica nossas maiores inseguranças e as usa para nos deixar ainda mais vulneráveis. Já passei por isso em locais de trabalho, com familiares e em relacionamentos amorosos.
Acredito que é por isso que nos apoderamos dessas humilhações e contamos sobre elas para para todo mundo à exaustão. Muitas vezes, o medo de revivê-las é tão grande que servem de justificativa para desistirmos de nossos sonhos. Aí dizemos algo como “não preciso ficar passando humilhação” e seguimos ruminando a situação.
Apesar da dor emocional, ser humilhada não causa nenhum dano real. Ninguém morre de humilhação. E por mais que a gente não goste de admitir isso, se sentir humilhada é de, certa forma, uma escolha, um poder que damos ao outro.
Senta que lá vem história (de humilhação)
Quando eu era pré-adolescente, rolou um aniversário infantil lá em casa. Minha mãe e eu ajudamos a organizar a festa e recebemos os convidados da anfitriã com toda hospitalidade.
Na hora do parabéns, a irmã mais velha da aniversariante, que tinha a mesma idade que eu, cortava o bolo e distribuía para os convidados. Fui uma das primeiras a comer meu pedaço e pedir bis porque estava uma delícia.
Assim que estendi meu pratinho em sua direção, a irmã da aniversariante me olhou com desdém e, na frente de vários convidados, disse: “Você já comeu. Não tá vendo que nem todo mundo foi servido? Se sobrar, você come outro”.
Aquilo acabou com a minha raça. Fui invadida pela mais plena humilhação enquanto meus olhos se encheram de lágrimas. Lerda que era e sem o costume de brigar, me retirei e me tranquei no quarto da minha mãe, perdendo o resto da festa dentro da minha própria casa enquanto a garota que me esculhambou por causa de um pedaço de bolo curtiu cada momento e sequer me pediu desculpas.
Da mesma forma, quando não recebi o apoio e carinho que esperava dos meus patrões gringos, joguei meu intercâmbio para o alto e voltei para casa. Repetia para mim mesma todos os acontecimentos que me provavam que eu não precisava ficar passando humilhação no país dos outros.
E assim como a cortadora de bolo que aproveitou a festa na minha casa, meus patrões seguiram suas vidinhas impunemente. Apesar de terem se divorciado, ambos me parecem felizes.
Ela é uma bem-sucedida psiquiatra especialista em dependência química e trabalha numa clínica de reabilitação. Se casou novamente e teve outro filho, algo que sempre sonhou.
E ele? Meu Deus, ele está no topo. Apareceu na Forbes como um dos profissionais mais promissores do mercado financeiro, deu entrevista sobre sua mansão num site da cidade onde mora e está noivo de uma gostosona, mesmo sendo um gringo azedo, coxinha, chato e machista para caralho.
(Sim, perdi meu tempo stalkeando essas pessoas. Esse é o grande hobby dos humilhados).
E eu? Ainda tô pagando terapia para me recuperar do meu intercâmbio e acabei desistindo dos sonhos que me levaram àquele país por conta das humilhações que sofri e das que poderia sofrer.
Diante de tudo isso, qual o problema de ser um pouco humilhada de vez em quando?
Não sei se essas pessoas tinham o objetivo de me humilhar, mas humilharam. E acho que só reagi de maneira tão intensa porque eles acabaram trazendo à tona as inseguranças que eu não queria ver que existiam.
No caso do drama da fatia de bolo, eu tinha uma relação super complicada com meu peso e com minha alimentação. Então, ao ter meu segundo pedaço de bolo negado, me senti exposta. Era como se aquele garota tivesse esfregando na minha cara que eu era uma gorda descontrolada e ia comer até a comida dos outros porque só pensava em encher minha barriga.
No caso dos gringos, eu era estrangeira de um país pobre em um país rico, contratada para fazer um trabalho que, aqui no Brasil, era visto como subemprego, o que sobrava para quem não tinha estudado, para quem era inferior - o que é curioso porque foi um dos trabalhos mais importantes, desafiadores e recompensadores que já tive na vida. Ao me tratarem com deboche e desconfiaça, era como se provassem para mim que eu era, sim, uma cidadã de segunda classe.
Essas pessoas só me afetaram tanto com suas atitudes e palavras porque me permiti humilhar. Como tinha uma visão distorcida de mim mesma e não tinha clareza do meu poder e dos meus objetivos, acreditei no que diziam a meu respeito.
Por mais doloroso que seja, não há problema em ser um pouco humilhada de vez em quando
Quando alguém nos trata de maneira injusta, é óbvio que vai doer e fazer com que a gente se sinta pequena e indefesa. Isso é inevitável. E esse sentimento deve ser acolhido.
É mais que aceitável se sentir um lixo e querer morrer e matar a pessoa e sentir muita, mas muita raiva e precisar desabafar com Deus e o mundo só para ouvir “Você está certa. Essa pessoa foi péssima com você”. Mas até onde levar isso?
Ficar remoendo a situação não muda o passado, não faz a pessoa retirar o que disse e você se sentir melhor. Mesmo quando há um pedido de desculpas, a dor daquele momento em que alguém te esculhambou permanece. Então, o melhor é seguir em frente e transformar a experiência em outra coisa.
O que você pode fazer com a humilhação?
Acho que, ao se perceber o humilhada, vale se perguntar o seguinte:
Por que aquela pessoa te fez sentir humilhada? O que a mágoa revela sobre a sua visão de si? Como você pode lidar melhor com esse sentimento para que ele não seja alvo de alguém mal-intencionado da próxima vez?
Cabe tomar alguma atitude para corrigir a situação? Se foi vitima de um crime, como racismo ou homofobia, você pode denunciar ou processar a pessoa? Se for dentro do ambiente de trabalho, há algum departamento que possa te ajudar? Dá para meter a boca no trombone na internet e fazer um escândalo de forma que a pessoa ou instituição não tenha escolha outra escolha a não ser reparar o erro?
Você pode estabelecer limites mais claros? O que você gostaria de ter dito na hora? Ensaie seus argumentos e os tenha na ponta da língua caso aconteça novamente.
Vale conversar com a pessoa e expor como se sentiu? Em alguns casos, a pessoa sequer tem noção de que foi ofensiva e merece uma segunda chance.
O que você pode fazer por você? Tem algo de concreto que possa ser mudado? Por exemplo, se alguém te humilha porque você está desempregada, é possível procurar por vagas com mais afinco, criar alguma fonte de renda ou desenvolver alguma habilidade? Talvez o que gera a humilhação é achar que a pessoa está certa a seu respeito.
Ficar se sentindo mal por anos, reclamando da pessoa que te fez sentir diminuída, não vai te beneficiar em nada e provavelmente vai te machucar mais. Percebi que aprender a lidar com as humilhações é mais eficaz do que fazer de tudo para evitá-las.
O que eu teria feito diferente?
No caso da fatia de bolo da discórdia, gostaria de ter metido a mão no bolo, arrancado um pedação, dado uma boa mordida e esfregado o resto na cara da escrota. Por mais mesquinho que seja, deveria tê-la lembrado de que ela estava na MINHA casa e que eu tinha ajudado a decorar, enrolar docinho e que ia limpar a bagunça toda no final. Então, ia comer, sim, mais um fatia de bolo e, se ela se incomodasse, pau no cu dela.
Caso não tivesse tido coragem para fazer um barraco, gostaria de ter investigado porque levei aquela grosseria tão para o pessoal ao ponto de deixar a festa onde eu estava me divertindo.
No caso do sonho americano que virou pesadelo, não sei se tinha muito o que eu pudesse fazer contra eles. Morava na casa deles, dependia do dinheiro que eles me pagavam e talvez confrontá-los seria pior para mim. No entanto, se não fosse pelo meu completo surto ansioso e depressivo, que foi alimentado pelo fato de, entre outras coisas, me sentir humilhada, acho que eu deveria ter mudado de família e ficado nos EUA, em alguma cidade maior, mais quente e que fosse mais a minha cara. Também teria procurado uma psicóloga para me ajudar com a saúde mental.
Gostaria de ter me apegado aos meus objetivos com todas as forças e não permitido que um gringo idiota, dizendo que pagava meu salário, me parasse. Queria ter entendido que aquele era só um obstáculo e que o tratamento que eu recebia não dizia nada sobre mim e, sim, demonstrava o caráter duvidoso daquelas pessoas.
Em ambas ocasiões, não tinha maturidade para reagir de outra maneira. Porém, ao revisitar essas experiências agora tiro delas uma lição: não tem problema ser um pouco humilhada de vez em quando.
Como pretendo lidar com as humilhações futuras?
Hoje, aos 34 anos, espero ter muito claro meu valor e não deixar que ele seja ditado por outras pessoas. Também espero ser mais ativa na busca por soluções, ou seja, não me trancar no quarto dos meus pais para chorar. Brigar, conversar, estabelecer e reforçar limites, buscar as medidas cabíveis, olhar para dentro de mim e ver o que posso mudar: aprender algo, buscar melhorar... Em outras palavras, usar a merda como adubo!
O mundo não é justo. A gente vive num sistema selvagem que tem como método nos humilhar para que a gente continue consumindo e se submetendo a mais humilhações por acreditar não haver outra saída. Então, se traumatizar com a humilhação e permanecer no trauma só deixa a gente mais vulnerável ainda.
Ao ser humilhada - desenterrando o meme já datado -, bote seu cropped e reaja!

Fiquei muito em dúvida se deveria escrever esse texto por achar que ele poderia soar meritocrático. E não é isso, tá? Sei que muitas desigualdades são estruturais e fazem com que a gente se sinta pequeno e, de certa forma, seja.
Não é para dizer que a gente tem que normalizar humilhações ou, pior ainda, qualquer forma de preconceito. Quando não houver riscos para sua integridade física, denuncie mesmo, faça um escândalo.
Mas percebo que a gente se coloca nesse lugar de vítima coitada e não consegue ver que dá para fazer algo até as pequenas humilhações e que a gente não deve permitir que elas sejam um obstáculo para chegar onde desejamos. Espero que isso tenha ficado claro.
Sim, ainda tenho a necessidade de me explicar para as pessoas. Me deixa. Tô fazendo terapia para resolver isso também hahahahaha
Miga, amei o que vc escreveu. Parecia que eu estava sentada ouvindo vc me contar sobre tudo isso. Concordo com você sobre essa questão de que as vezes sofremos tanto por algo e quem praticou não está nem aí! Um dia eu vi uma escritora de educação infantil e ela disse algo do tipo, alguma vezes dói porque aquele lugar já foi machucado e reagimos com mais agressividade. E isso é realmente uma questão que só quem sente vai poder resolver. Estou na fase de tentar sem mais calmo e menos barraqueira. Aprendendo que em alguns momentos não querer estar certa, deixar pra lá ou reagir com bom humor tem tanto benefício... Na copa eu usei esse método e me ajudou a evitar muitas confusões e brigas desnecessárias que só iriam estragar o meu momento e dos amigos. Super necessário esse papo! Te amo. 💛🤍
Ah amiga que comentário maravilhoso! Apesar de eu não ser tanto de brigar, fico toda triste e me fecho e quem perde sou eu. As vezes, tem aprender a levar na boa mesmo ou falar as coisas sem se estressar pq aí tudo fica mais leve! Obrigadaaaa por me ler ❤️❤️❤️ te amo!