#20 Espiritualidade: de Charlie Hunnam a Shantaram
Como um livro e uma série têm me feito repensar minha relação com a fé
Uma playlist para entrar no clima:
No dia 14 de outubro, estréia na Apple TV, uma série chamada Shantaram, estrelada por Charlie Hunnam, o homem que deu vida a Jax Teller, de Sons of Anarchy - meu personagem favorito da minha série favorita, vai assistir, bla bla bla.
O trailer de Shantaram puxou um fio na trama dos meus pensamentos e gostaria de dividir essa experiência com você, querida leitora!
É óbvio que vou começar com um prelúdio
O ano era 2011, o pior ano da minha vida.
Em 2010, eu tinha realizado o sonho de ir para os EUA, mas minha saúde ficou mental e a coisa toda se tornou um grande pesadelo. Quando estava começando a me sentir uma pessoa de novo, minha tia, minha pessoa favorita do mundo, teve que fazer uma cirúrgia e morreu poucos dias depois.
Mas naquele ano, eu também conheci um moço no “Ok Cupid”, o predecessor do Tinder, e, com ressalvas, foi uma experiência bem legal. Ele tinha uma moto, mas nunca foi aos nossos encontros com ela porque eu morria de medo de andar de moto e ele sempre me levava em casa.
Como tinha interesse nos veículos motorizados de duas rodas, esse moço era muito fã de uma tal de uma série chamada Sons of Anarchy - kkkkkkkk. Eu já tinha visto posteres da série. Afinal, como não ver quando a cara do jovem Charlie Hunnam de cabelo comprido está estampada neles? Mas nunca tinha me chamado atenção porque homens numa moto dando tiros não era bem o meu tipo de entretenimento.
Em algum momento do nosso relacionamento, ele estava assistindo alguma temporada e disse:
- Acho que você deveria assistir Sons of Anarchy. Tenho certeza que você vai curtir e você vai amar o Jax. Ele é muito seu tipo.
Eu respondi com algum tipo de “aham, tá bom” e sequer fui atrás do trailer. Um tempo depois, ele estava vendo um episódio e me enviou um SMS.
“Acabei de ver uma cena em que aparece a bunda do Jax. Tenho certeza que você vai adorar ver isso”.
Bunda branca do Jax de fora? Porra, tá aí uma coisa que eu tinha que ver hahahahaha.
Mentira - mais ou menos -, mas tenho uma qualidade que é me interessar por coisas que as minhas pessoas gostam. Se alguém comenta de um filme, série ou livro com grande paixão e insiste que eu conheça, eu costumo dar o benefício da dúvida. E foi assim que me apaixonei por Sons of Anarchy, Jax Teller e também por Charlie Hunnam.
Mundinho Charlie Hunnam BR
Sons of Anarchy abre com Jax em sua Harley, rodando pelas ruas de Charming, fumando um cigarro ao som de The Black Keys. Deu nem cinco minutos do episódio e eu já estava encantada.
Em Sons of Anarchy, acontece uma das coisas mais preciosas que pode acontecer no audiovisual: um bom roteiro nas mãos do ator certo.
Charlie era o ator perfeito para interpretar Jax, o bad boy do bem. Com seu carisma e talento, ele sabia dar ao Jax as nuances que o personagem pedia: ele é violento e vingativo, mas também é sensível, leal e bem-humorado. Por isso, me apaixonei perdidamente pelo princípe dos motoqueiros e até hoje revejo a série com o mesmo estusiasmo que senti ao ver a cena de abertura pela primeira vez. E parte desse amor transferi ao ator que me deu a chance de conhecer e aprender com Jax - porque, sim, eu aprendo um monte com a ficção.
E só me dei conta da dimensão desse amor pelo trabalho de Hunnam ao ver o trailer de Shantaram há alguns dias atrás.
Ai Charlie, que bom te ver de novo!
A primeira parte de Shantaram foi gravada na Índia em 2019. Por conta da pandemia, as gravações foram adiadas até novembro 2021 quando as últimas cenas foram gravadas em Melbourne, na Austrália. E exceto por algumas fotos tiradas por papparazzi durante as externas, não havia muitas informações sobre a série até agora.
Aí, em meados de setembro, do nada, uma cena da série apareceu na timeline do Twitter e eu corri para caçar mais informações e descobri que o trailer de Shantaram já estava disponível.
Dei play e fui surpreendida: ver a carinha de Charlie Hunnam como Lin Ford na tela fez com que uma forte onda de empolgação e alegria percorresse meu corpo e provocasse um sorriso involuntário.
Sabe quando a gente não vê um amigo há muito tempo e aí o reencontro a acontece e a gente fica muito feliz ao rever a pessoa? Foi exatamente assim que me senti e achei super esquisito porque, por mais que eu ame ficção, nunca tinha sentido esse tipo específico de alegria ao ver um ator fazer um personagem.
E foi assim que me dei conta do quanto AMO ver Hunnam atuando e entrei no modo “100% Shantaram”. Entre nesse modo você também:
Desafio: 30 dias para ler 1000 páginas
A série Shantaram é baseada em um livro de mesmo nome, o best-seller de Gregory David Roberts. Até ouvir falar da série, não conhecia o livro e, até ver o trailer, não tinha tido curiosidade de ler. Mas fiquei tão emocionada ao rever Charlie Hunnam que corri para caçar o romance que tem nada mais nada menos que mil páginas para me preparar para ver a série.
Comecei a ler dia 17 de setembro e as primeiras paginas me capturaram de tal forma que em dez dias só faltam 30% do livro para eu concluir a leitura. Digo 30% porque sou leitora de Kindle, não porque sou uma maníaca da matemática.
Gregory David Roberts tem um talento que admiro em qualquer autor: a capacidade de descrever sentimentos, ações e paisagens de forma poética sem soar brega. As páginas são recheadas de ensinamentos e reflexões filosóficas sobre a existência humana e as conexões que construímos ao longo da nossa jornada e seus personagens são tão cativantes quanto Charlie Hunnam diante de uma câmera.
Sobre Shantaram
Shantaram conta a história de Lin Ford, um ladrão de bancos que foge de uma prisão de segurança máxima na Austrália, consegue um passaporte neozelandês falso e se refugia em Mumbai - na época Bombay - na Índia. Lá, ele conhece Prabaker, um guia que ele contrata para mostrar a cidade para ele e Karla, uma mulher misteriosa e intrigante, por quem se apaixona. Eventualmente, Lin mora numa favela onde atua como uma espécie de médico para a população, se involve com a mafiosos afegãos e vive muitas aventuras como exilado na cidade pela qual se apaixonou. A trama é envolvente e não consigo parar de virar as páginas para saber o que vai acontecer com Lin, que é um homem adorável, daqueles que a gente fica doida para conhecer na vida real. Assim como Jax Teller, ele é um bad boy do bem.
A história é baseada na própria vida de Gregory David Roberts. Nascido e criado em Melbourne numa família de classe trabalhadora, ele se casou muito jovem e quando se divorciou e perdeu a guarda da filha, acabou se viciando em heroína e cometeu diversos assaltos a banco para sustentar seu vício. Ele foi capturado e, assim como seu personagem, fugiu da prisão de segurança máxima, conseguiu fugir para a Nova Zelândia e, de lá, pretendia ir para a Alemanha, onde acreditava que passaria despercebido.
Ao comprar sua passagem, ele ganhou dois dias em Bombay como cortesia. Apesar de frustado com isso, não havia muito o que pudesse fazer e esperaria os dois dias na Índia até poder embarcar para a Alemanha. Porém, nas primeiras horas em Bombay, ele sentiu algo inexplicável, uma identificação, como se ele reconhecesse aquele local e aquelas pessoas - o que lembrou da forma como começou minha história com o Rio de Janeiro. Então, Gregory rasgou sua passagem para a Alemanha e permaneceu na Índia por dez anos, vivendo numa favela, atuando como médico e se envolvendo com a máfia.
Apesar das semelhanças entre sua vida e a de Lin, o autor afirma que não só o protagonista, mas todos os outros personagens do seu romance são fictícios. O objetivo dele com sua história é falar sobre a experiência do exílio e, para isso, ele criou círculo de pessoas que saíram de seus países e cidades natais e se encontravam em Bombay, cada uma por um motivo.
Ele afirma que o Prabaker da vida real, o guia que se tornou seu amigo, jamais poderia ser um personagem, pois não era lá uma pessoa muito cativante. Mulherengo e um tanto quanto desonesto, ele não tinha o mesmo carisma e caráter admirável do fiel escudeiro de Lin. Dua própria família dizia para Gregory que ele era sempre bem-vindo, desde que não trouxesse seu guia e amigo com ele.
E como sei de tudo isso?
Boas-vindas ao mundinho GDR BR
A história de Shantaram é tão fascinante que me despertou a curiosidade de conhecer o homem que a escreveu. Queria descobrir quais daqueles eventos eram reais e quais eram ficção.
Como estava fazendo faxina, recorri aos podcasts no Spotify. Achei uma entrevista com ele e fiquei ainda mais intrigada com aquele homem. Gregory David Roberts é dono de uma voz tranquila, fala de maneira simples, porém profunda, com muita franqueza e humildade. Na entrevista, ele relembra os eventos que o levaram a escrever Shantaram e sobre o caminho que percorreu até encontrar seu próprio caminho de espiritualidade. Num livro chamado “The Spiritual Path”, ele conta como foi.
Ele atribui seu envolvimento com o vício e o crime a uma fraqueza de caráter. Após seus anos em Bombay, acabou sendo capturado na Alemanha e cumpriu dois anos da sua sentença na solitária. Embora tenha sofrido com violência e a solidão, ele fala dessa experiência de maneira pacífica e como um dos degraus que o levou a reconhecer suas falhas e encontrar uma nova forma de viver. Embora tenha sido agredido pelos guardas diversas vezes, não guarda nenhum ressentimento deles. Enquanto cumpria sua sentença meditava e aproveitava os dias ali para impactar a rotina dos outros prisioneiros de maneira positiva.
Ainda na cadeia, ele começou a escrever Shantaram. Seu manuscrito, que era de fato escrito à mão, foi destruído pelos guardas duas vezes e ele teve que reescrever tudo de novo.
Ouvir suas palavras preencheu minha mente turbulenta com uma certa paz. Fiquei impressionada com a eloquência daquele homem que fala muito sem dizer nada desnecessário, que carrega com ele tranquilidade e sabedoria e, apesar de não ter uma religião, tem uma fé inabalável em algo maior e uma forte espiritualidade.
A partir dessa entrevista, enquanto leio Shantaram, um livro que me arrancou risadas tão profundas que me faz gargalhar num vagão lotado do metrô e lágrimas tão sinceras que estou há dias numa espécie de luto, tenho ouvido as palavras de Gregory David Roberts e estou, assim como por Charlie Hunnam, encantada pelo autor.
Em seu canal de YouTube, ele responde perguntas de seus leitores e compartilha um pouco mais de sua filosofia de vida e do seu processo de escrita.
Em vídeos curtos e didáticos, ele resume seu processo e dá dicas encorojadoras a quem deseja contar suas próprias histórias. Uma das coisas que guardei dessas lições foi a visão dele sobre o que é arte e o que é craft, que eu traduzo como habilidade, na escrita.
Para ele, a arte é o que o escritor produz no seu rascunho, na primeira vez que escreve o texto. Esse primeiro produto da sua criatividade é a arte. No entanto, quando ele revisa e edita, portanto reescreve o texto, isso é a habilidade. Porque a arte não está pronta, ela precisa ser moldada como argila, refinada para se tornar o produto final, que é literatura. Eu amei essa definição e ela fala diretamente com meu esforço de me permitir, primeiro, produzir minha arte para, depois, trabalhar nela com minha habilidade de reconstruir as frases e recombinar as palavras.
E ao ver aquele senhor com uma linha vermelha pintada na testa, com um incrível senso de humor e espontaneidade, depois de ter vivido as coisas mais loucas, falar sobre sua vida e seus conhecimentos de forma tão pacífica, me fez ter o desejo de buscar a minha própria espiritualidade - achou que eu não ia chegar nesse ponto nunca, né?
O meu caminho espiritual
Fui criada no catolicismo com direito a tudo que ele oferece: batismo, primeira comunhão, crisma e casamento na igreja. Eu completei a checklist da perfeita católica todinha, mas a verdade é que, por mais influenciada que a minha fé seja pelo cristianismo católico, não consigo me entender como parte dessa e de nenhuma religião cristã e não é de hoje.
Nunca fui muito chegada a ir à igreja e minha mãe provavelmente rebateria isso com uma série de relatos fofos de mim como uma pequena beata, mas a verdade é que nunca me senti verdadeiramente conectada com a Igreja Católica e sempre critiquei secretamente como as coisas funcionavam. No entanto, nunca me interessei de fato por nenhuma outra religião apesar de ter tido muitas chances para isso.
Não gosto do compromisso de ter que comparecer a cerimônias e incorporar práticas religiosas ao meu dia a dia. Me parece que sempre há algum tipo de punição envolvida, mesmo nas religiões espiritas, inclusive as de matriz africana.
Nenhuma explicação sobre o divino parece satisfazer os meus questionamentos. E aparentemente não consigo desenvolver uma devoção profunda e verdadeira pelas figuras religiosas, como santos, entidades e até mesmo Deus, da forma como ele é descrito pela maior parte das religiões. Quer dizer, tenho uma parceria de longa data com Nossa Senhora Aparecida, com São Bento e sua oração que soa como um exorcismo e também troco muita ideia com eu anjo da guarda, mas nada disso se parece com o que vejo nas mulheres da minha família e na maior parte das pessoas religiosas que conheço.
Porém, ainda assim, dentro de mim, tenho fé em algo. Realmente acredito que há alguma coisa além da estupidez da existência humana. Confio que algo me protege, que me guia, que há um propósito em estar aqui neste mundo de sofrimento. Não sei nada além disso e nunca me dediquei realmente a desvendar esse mistério, mas ver a tranquilidade com que GDR leva sua vida na Jamaica, fazendo música e escrevendo, me fez querer me dedicar mais à minha espiritualidade.
O que percebi ao ler Shantaram é que não ter fé, não ter essa resignação de quem acredita em algo maior e entende sua própria insignificância diante do universo, gera uma angústia constante que interfere no meu julgamento. Minha cabeça está sempre repleta de inseguranças e pensamentos controladores, o que nada mais é que medo do futuro.
Quando vejo GDR falar sobre seu passado, seu presente e futuro, ele não parece ter medo. Ele tem essa paz e clareza de quem não tem preocupações porque confia em algo além. Claro que tudo isso é uma interpretação minha, mas gostaria de encontrar isso, essa confiança que apazigua o medo e limpa a mente, deixando-a livre para fazer o que é realmente importante: viver nossos talentos e estabelecer relações.
Que viagem, né?
E foi assim que ver Sons of Anarchy há muitos anos atrás, conhecer Charlie Hunnam, seguir sua carreira, me fez ler um livro que estou amando e com o qual estou aprendendo, conhecer seu autor e desejar desenvolver algum tipo de espiritualidade que me ajude a me concentrar mais no que realmente importa e confiar no destino e, assim, quem sabe fazer coisas significativas que alimentem meu espírito e tragam o bem para outras pessoas. Afinal, grande parte da minha energia é gasta com sofrimento e paranoia e não sobra muita coisa para me desenvolver como ser humano e aproveitar a experiência na Terra. Caraca, que loucura!
Por fim, recomendo que leiam Shantaram. É bem fácil achar em inglês e, na Amazon - a gente tá preso no pacto com esse demônio -, tem o e-book em português. Vejam Shantaram também. Pelo trailer, deve ser um pouco diferente do livro, mas acho que vai ser uma daquelas séries, como SOA, que você fica com a bunda grudada no sofá, aí ri e chora e fica apaixonada pelos personagens. Quem souber inglês, vale procurar as entrevistas de GDR. Ele é uma pessoa muito interessante.
Vocês também entram nessas piras que uma coisa puxa a outra e, quando você vê, você tá repensando sua vida e suas escolhas? Eu sou assim o tempo todo e a ficção é uma das coisas que mais me coloca nesse movimento. Espero que tenham gostado dessa viagem!